Jorvan Vieira é um nome que pouco deve dizer à maioria dos adeptos de futebol. Filho de portugueses emigrados no Brasil, fez grande parte da sua carreira no Médio Oriente, onde é acarinhado por milhões. É coautor de um dos mais bonitos capítulos da história do futebol, após ter conquistado a Taça Asiática, em 2007, com o Iraque, um país desgastado pela guerra.
“Aqui em Portugal ninguém me conhece”, confessou o técnico que, embora tenha nascido no Brasil, se considera português.
“Há uns tempos fui ver o Portugal-Hungria e estava lá o Toni. Fui com o Jorge Andrade, que também é um grande amigo meu. O Toni quando me viu disse: ‘Olha o Vieira. Esse homem é Deus lá no mundo árabe’. Vindo do Toni, isso é uma honra”, recordou em conversa com o ZAP.
O seu historial corrobora os elogios. Até agora esteve em 21 clubes e seis seleções, corricando por Catar, Marrocos, Egito, Malásia, Arábia Saudita, Irão, entre outros. Em Portugal, trabalhou no Farense, Paredes, Espinho e Macedo de Cavaleiros.
Fez quatro anos em medicina e, quando faltava apenas a especialização, foi para a universidade de desporto. Com medo da reação da mãe, escondeu o segredo durante quatro meses. “A minha mãe quando soube quase que teve um ataque cardíaco”, disse entre risos.
Jorvan era diretor técnico de uma equipa marroquina antes de vir para Portugal, para o Macedo de Cavaleiros. Veio com o sonho de reencontrar a parte portuguesa da família com quem tinha perdido contacto há mais de 50 anos.
A primeira aventura como treinador foi no Catar, em 1978. Na altura, um diretor do clube onde trabalhava falou-lhe da proposta vinda do Médio Oriente e disse que se estivesse interessado tinha de ir a um hotel em Copacabana e procurar o sultão da federação qatari. Ligou para a escola onde também dava aulas e disse que nesse dia não podia ir trabalhar porque o carro tinha avariado.
“E lá fui eu, de fato de treino, num Volkswagen velhinho, para um hotel de cinco estrelas. Todos olhavam para mim de cima a baixo. Quando subi à suite no último andar, o sultão veio-me receber e quando abriu a porta tinha lá um monte de meninas na suite dele. Veio com uma pastinha tipo 007, que estava cheia de dólares e um contrato. Recebi 50 mil de prémio de assinatura na mão”, recordou Jorvan.
“Eu quando vim para o Catar, vim com um salário de 7 mil dólares. Seria algo como 70 ou 80 mil hoje. Eu tinha sete empregos para poder sobreviver e o dinheiro praticamente não sobrava”, acrescentou.
Mundial ’86: A vitória marroquina frente a Portugal
Em 1986, depois de ter estado em alguns clubes marroquinos, assumiu os cargos de treinador adjunto e preparador físico na seleção marroquina. Foi convidado pelo então selecionador José Faria, que, segundo Jorvan, fez um apelo ao rei de Marrocos: “Se vocês trouxerem esse homem, nós apurámo-nos para o Mundial do México. Se não trouxer, não nos apuramos, que eu sozinho não dou conta”. E assim foi.
Jorvan foi a figura escolhida para estar presente no sorteio dos grupos, na Suíça. O destino ditou que Marrocos jogaria contra Inglaterra, Polónia e Portugal. Na conferência de imprensa, um jornalista perguntou ao selecionador inglês Bobby Robson o que achava do primeiro jogo frente aos marroquinos.
“Ele virou-se para o jornalista, abriu o bolso do casaco e disse: ‘Está aqui; está no bolso’”. A Inglaterra viria a empatar 0-0 com Marrocos. No final do jogo, na conferência de imprensa, Jorvan ripostou: “Eu gostaria de perguntar em primeiro lugar ao mister Robson onde está o casaco dele para eu lhe meter a mão no bolso”.
E se o jogo frente a Inglaterra teve quase o sabor de uma vitória, o triunfo por 3-1 frente a Portugal, que selou a passagem aos oitavos de final, foi o verdadeiro aviso para não se subestimar a seleção marroquina.
“Era a nova geração de Portugal em evidência. Eram jogadores firmados, enquanto Marrocos eram desconhecidos. Nós só tínhamos quatro jogadores profissionais”, salientou Jorvan. “Portugal jogou mais aberto connosco e subestimou um pouco a seleção de Marrocos”.
“Tínhamos na época um dos maiores jogadores africanos, o Mohammed Timoumi. Sinceramente, era uma grande equipa. Na época, nós já fazíamos o que muitas equipas fazem hoje: circulação de bola, vira para um lado, vira para o outro, toca, sai a jogar. Apertou? Vira para o outro lado”, frisou.
A caminhada de Marrocos no Mundial de ’86 viria a terminar nos oitavos de final, após uma derrota por 1-0 frente à Alemanha de Franz Beckenbauer.
“Se for para o Iraque tem bomba. Aqui, eu não como”
Nos anos 80 e 90, o futebol iraquiano era controlado por Uday Hussein, filho mais velho do então ditador iraquiano Saddam Hussein. Uday era conhecido pela sua personalidade violenta e sádica, que o afastou categoricamente de uma possibilidade de substituir o seu pai e ascender ao poder.
Caso os jogadores não correspondessem às expectativas dentro de campo, Uday ordenava que fossem espancados ou que lhes rapassem a cabeça.
Ex-jogadores que conseguiram escapar do país, mais tarde, contaram as histórias da tortura a que foram submetidos. Uma vez, por exemplo, Uday obrigou os jogadores da seleção a jogarem com uma bola de cimento por falharem a qualificação para a fase final do Campeonato do Mundo de 1994.
Jorvan Vieira assumiu as rédeas da seleção iraquiana em 2007, quando Uday já não estava no poder, com o objetivo de conduzir a equipa na Taça Asiática.
“Eu tinha duas ofertas: Iraque e um clube saudita. No Iraque eram 30 mil dólares, na Arábia Saudita eram 60 mil – o dobro. Eu não estava a ver dinheiro, estava a ver futebol e o Iraque tinha excelentes jogadores. Com a ideia que eu tinha, ia pegar neles e ser campeão”, atirou.
“No dia em que eu assinei contrato com a federação, o presidente não fixou prémios de qualificação desde os oitavos até à final. Ele disse que o Iraque nunca tinha passado dos quartos de final e que se eu quisesse fixava prémio até lá. Eu disse que não, porque ia ser campeão. Ele riu-se. Na final, quando acabou o jogo, eu aponto para as tribunas, onde estava o presidente, para lhe mostrar que eu tinha ganho”, recordou.
Ainda na preparação para a competição, em que a equipa tinha de estar constantemente a trocar de país devido a questões de segurança, Jorvan relembra que a equipa passou por uma fase complicada.
“Passamos por momentos difíceis em que a federação do Iraque praticamente abandonou-nos na Jordânia. O hotel onde estávamos disse que a federação não tinha pagado e que por isso, embora nos desse acomodação, não nos fornecia refeições. Usamos o nosso cartão de crédito para comprar comida. Comíamos no chão do hall do nosso andar“, explicou Jorvan Vieira.
“Se for para o Iraque tem bomba; vão-me matar. Aqui, eu não como e tenho de treinar como um cavalo”, acrescentou ainda.
Em declarações ao ZAP, Jorvan recorda ainda um outro episódio caricato. Um dia, antes de um jogo particular, um militar do comité chamou Jorvan e deu-lhe um papel com a equipa que iria jogar.
“Vai-me desculpar o que eu vou falar agora, mas o senhor vai tomar no cu, porque quem manda nesta merda sou eu. Se tu quiseres, vais-te sentar no banco e pões a merda dessa equipa. Quem vai escolher a equipa sou eu”, ripostou, de imediato, Jorvan.
O militar insistiu e explicou quem era e a posição influente que tinha na federação. De nada valeu, com o selecionador a bater o pé e a sair porta fora.
“Então tu vais à merda e a partir de agora és o treinador. Fui para o meu quarto, fiz as malas, apanhei um táxi e fui embora para o aeroporto. Eles vieram de carro atrás de mim e imploraram-me para que eu voltasse, prometendo que não iriam interferir mais no meu trabalho”, contou Jorvan.
“Esse dirigente foi afastado e mandado de volta para o Iraque. Na altura disse: ‘Mandem-no de volta, que ele é coronel no exército. Deem-lhe um revólver para ver se ele mata alguém ou alguém o mata”, acrescentou.
“Eu fui lá e com o futebol acabei com a Guerra do Iraque”
Quando chegou ao Iraque a primeira pergunta que fizeram a Jorvan foi: “Sabes disparar?”. O luso-brasileiro tinha andado na tropa e uma arma não lhe era desconhecida. Então, deram-lhe uma 7.65, com a qual Jorvan andava na cintura. “Se alguém se aproximar e eu vir que não sei quem é, eu disparo primeiro e depois pergunto o nome”, disse.
A seleção iraquiana era composta por um grupo muito diversificado religiosamente, contando com xiitas, sunitas, curdos e católicos. O país estava em guerra, em pleno conflito Iraque-Estados Unidos, e morriam diariamente centenas de pessoas.
“Foi muito complicado. Quase todos do meu grupo, entre jogadores e staff, já tinham perdido pessoas da família de forma brutal. Eu tive que ter um jogo de cintura muito grande e tinha que ser pai, amigo, carrasco e polícia. Tanto que a imprensa iraquiana dizia que eu era o Saddam Hussein da seleção, devido à minha dureza com todos”, disse Jorvan ao ZAP.
“Todo aquele que se manifestasse, eu ameaçava que o mandava de volta para o Iraque: ou jogava à bola ou ia para a guerra. Aí eles tremiam, entravam na linha e diziam que ficavam”, explicou.
O facto de contar com jogadores de grupos étnicos muito diferentes era um desafio para o selecionador. Jorvan lembra que muitas vezes os jogadores até se entendiam, mas sentiam-se na obrigação de mostrar que não, porque tinham medo que chegasse aos ouvidos das pessoas no Iraque e depois existiriam represálias com a família que estava lá.
“Eu consegui com eles formar uma família em que abraçavam-se e beijavam-se quando marcavam golo, uma coisa que não acontecia anteriormente”, destacou.
A Taça Asiática não começou propriamente da melhor maneira para o Iraque, com um empate no primeiro jogo da fase de grupos contra a Tailândia. No segundo jogo, protagonizaram uma das suas melhores exibições, vencendo a poderosa Austrália por 3-1. Um empate contra o Omã, no terceiro jogo, foi suficiente para seguir em frente no primeiro lugar do grupo.
Nos quartos de final, o Iraque venceu o Vietname por 2-0 e nas ‘meias’ voltou a brilhar frente à Coreia do Sul. O encontro terminou com um nulo nos fim dos 120 minutos e as equipas decidiram a passagem à final nas grandes penalidade. O Iraque saiu por cima.
A qualificação para a final levou milhares de iraquianos às ruas, apesar da situação no país. A tragédia agravou-se quando um bombista fez-se explodir, em Bagdade, matando 30 pessoas. Outras cinco morreram devido a balas perdidas disparadas por adeptos a festejarem o triunfo.
Na final, frente à Arábia Saudita, um golo solitário do jovem goleador Younis Mahmoud, aos 73 minutos, deu a vitória inesperada aos iraquianos.
“Para os meninos foi uma coisa fantástica. Dizia-lhes que tínhamos de ser campeão para poder colocar um sorriso nos lábios dos iraquianos, que estavam cansados de chorar e sofrer. Nós éramos responsáveis por colocar um sorriso nos lábios deles”, atirou.
Hoje, Jorvan ainda não sabe como foi capaz de aceitar o desafio.
“Depois quando voltei para casa e estava à mesa com a família, vinha na minha cabeça aquela pergunta: ‘Porra, como é que tu conseguiste ir para lá? Como é que conseguiste ir para lá e voltar vivo?!’. De certo jeito, agi num ato de insanidade mental em aceitar”, reconheceu o técnico veterano.
Ainda assim, garante que foi a melhor decisão que fez: “É bom para nos sentirmos úteis, sentir que estamos a trazer alegria e felicidade para as pessoas, nem que seja por uma hora e meia”, confessou.
“Eu não fui o homem que chegou à frente de um parlamento para dizer para acabarmos com a guerra. Nada disso. Eu fui lá e com o futebol acabei com a Guerra do Iraque. Depois da nossa vitória, a guerra acabou. E durante o período em que jogamos a Taça Asiática, os 15 dias de competição, foi o período em que menos pessoas morreram no conflito Iraque-EUA. É um mérito para mim, uma vitória muito grande”, assumiu orgulhosamente.
“O facto de não ter oportunidades aqui é duro de aceitar”
Jorvan tem 67 anos, mas garante ter aspeto de 55. Não faz por menos. Entre as diferentes máquinas do seu ginásio improvisado, faz religiosamente 800 repetições por dia e ainda, ultimamente, “uns 20 minutinhos” de natação. Não fuma nem bebe, só tem o problema de dormir pouco. Fala sete idiomas e só não ganhou o prémio Princesa das Astúrias por causa de Schumacher.
“A minha família é o futebol. Os meus familiares são a minha segunda família”, disse seriamente, não se atrevendo a brincar com algo tão sério como o futebol.
“Só vou para países que estão em guerra e que estão com problemas”, disse ironicamente. “Até parece que vou para ser lá o homem que acaba com as guerras”.
Descreve-se como um treinador muito profissional e não aceita que lhe digam como fazer o seu trabalho.
“Já tive problemas em vários países por ser assim autoritário. Eles dizem que eu quero mandar em tudo, mas não é isso. Eu não sou engenheiro; você é; vou-lhe ensinar a construir um prédio? Eu não sou médico; você é médico; vou-lhe ensinar a fazer uma cirurgia? Não posso. Cada vez que chego a um novo clube, o meu slogan é o seguinte: Cada macaco no seu galho”, atirou.
É difícil acreditar que um treinador com tanto prestígio esteja sem treinar durante tanto tempo. Jorvan está há um ano e meio sem trabalho, desde que saiu do Ismaily, do Egito, e explica porquê: “Mandei o presidente para o caralho”.
Sem o aval do treinador luso, o presidente tirou um jogador da lista de convocados, porque não gostava dele. Quando soube, Jorvan não esteve com meias medidas.
“Eu nunca subi três andares tão rapidamente na minha vida. Parecia que eu tinha 15 anos”, contou Jorvan após lhe terem dito que o presidente estava em reunião. Abriu a porta com um pontapé e confrontou o presidente: “Não trabalho mais com você. Aqui eu não fico mais”.
Está sem clube, mas planeia voltar a treinar, pelo menos mais dois ou três anos. Depois de sair do Egito teve ainda várias ofertas, mas que nunca acabaram por se concretizar.
“Gostava de continuar a treinar cá, mesmo sabendo que não tenho mercado cá e não sou conhecido. O facto de não ter oportunidades aqui é duro de aceitar. Eu tenho todas as qualificações para ser treinador cá, nem que seja numa segunda divisão”.
Uma das explicações que mais ouve é que não conhece o futebol português. “É preciso conhecer? O que conhecemos do futebol português é só porcaria, é só pouca vergonha, são só esquemas”, assumiu.
E se surgisse a oportunidade de treinar em Portugal, aceitaria? “Na hora. Não hesitaria”, respondeu. “Eu sei que ainda posso fazer alguma coisa de interessante aqui”.
Apesar de manter o seu foco em Portugal, o Iraque ainda tem um lugar especial no coração de Jorvan. Afinal de contas, é lá que tem uma academia de futebol com o seu nome. Depois de a geração de ouro do futebol iraquiano lhe ter passado pelas mãos, é hora de preparar a próxima fornada de jovens talentosos. Quem sabe a história não se repita e possamos ver estas crianças porem novamente um sorriso na cara dos iraquianos.
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