Relatos incríveis de Rochele Nunes, que espera conquistar uma medalha em Tóquio. Mundiais de Judo começam neste domingo.
Considera-se uma “negra privilegiada“, cresceu num ambiente familiar pacífico, teve uma infância muito boa, mas tem vários episódios incríveis para contar. Rochele Jesus Nunes, que nasceu há quase 32 anos em Pelotas, no Brasil, veio para Portugal e faz parte da seleção portuguesa de judo desde 2019.
“No meu bairro nunca tive uma referência negra, nem entre os amigos”, começou por contar a judoca ao Globoesporte. Com uma família “diferenciada” desde cedo, a atleta sempre se sentiu “diferente” dos amigos. Foi olhada de lado pelas colegas de turma, na escola, quando disse que não conseguia acompanhá-las numa saída para as compras: “Hoje vejo que não foi só uma questão financeira. Havia questões da cor da pele”.
Quando o pai comprou um carro mais caro, a polícia mandou-o parar várias vezes: “Era para percebermos que um preto com carro importado vai sempre chamar a atenção“. Mais tarde, já casada, quando ia abrir a porta da sua casa, a pessoa que estava do lado de fora perguntava onde estava a dona da casa.
Com 123 quilos, e “muito bem resolvida com isso”, a judoca acha que as outras pessoas incomodam-se e preocupam-se muito mais com o seu peso e com a sua saúde do que ela própria.
“Ser pesada foi uma escolha que eu fiz”, assegura. Dentro do mundo do judo, ouve comentários: “Ah, você é gordinha, mas as outras têm corpo muito pior do que o teu. Se eu escuto isso, outras pessoas devem escutar coisas ainda piores”.
“Para as meninas mais novinhas que são gordinhas, eu tento passar a ideia de que não têm motivo para ter vergonha. O peso alto não significa que se deixe de ser vaidosa“, reforçou.
Mudança para Portugal
Rochele Nunes não esconde que veio viver para Portugal, e naturalizou-se portuguesa, por causa dos Jogos Olímpicos: “Vir para Portugal foi juntar a fome com a vontade de comer. No Brasil, eu era a terceira classificada no ranking nacional. Era muito difícil ir aos Jogos Olímpicos. Aí apareceu a oportunidade”.
“A primeira vez que vim a Portugal foi em passeio. Quando cheguei, conversei com pessoas que confiavam no meu trabalho e tinham vontade de fazer esse investimento. E aí eu vi o quanto talvez eu fosse boa, mesmo já achando que não fosse”, explica a judoca.
Morar em Portugal trouxe outras vantagens: “Também foi muito bom para minha personalidade como negra. Ganhei mais poder. Portugal tem uma colónia muito grande de africanos e acho que me vi representada pela primeira vez”.
“Quando me perguntaram de onde minha família era, a descendência, respondi que eram descendentes de escravos. Uma menina de 13 anos deu-me uma lição. Disse-me que todos nós somos descendentes de escravos, mas eu tinha que ir atrás de onde eles vieram, a origem, o país. Ser uma criança a explicar-me a importância disso foi um estalo na cara. Fiz um daqueles exames de ADN e deu que eu tenho origem senegalesa e cabo-verdiana”, relatou.
Rochele tem lido sobre a história de Portugal, sobre a cultura portuguesa, a cultura desportiva e também sobre o judo em Portugal: “Estimulei, acendi essa chama de ser portuguesa dentro de mim. É difícil criar raízes num lugar que não é o que nasceste, mas foi uma escolha que eu fiz”.
Racismo brasileiro, desconfiança portuguesa
Em outubro do ano passado, depois de ter falhado por pouco a conquista de uma medalha num Grand Slam de judo, a portuguesa recebeu uma mensagem, que indicava que Brasil e Portugal tinham vergonha dela e na qual se lia: “Foste para a Europa mas deverias ter ido para o inferno, macaca de m…”.
“Mexeu muito comigo. Comecei a tremer, a chorar, deu-me uma raiva! Eu tinha perdido a competição e logo a seguir dizem que eu sou uma vergonha. O meu pais quis ir logo à polícia. Pela minha história de vida, por ter tido uma infância privilegiada, diferenciada, eu achava que estava isenta disso. Não estou. E fiquei muito triste”, recordou a judoca.
Rochele considera que o Brasil é um país “mais racista” do que Portugal: “Aqui há muito imigrantes, os jovens pensam de forma diferente. Abominam qualquer tipo de preconceito. No Brasil ainda há muito racismo camuflado”, criticou, salientando no entanto que os portugueses são “mais desconfiados“.
E explicou: “Eu sentia que tinham um pé atrás por causa de outros casos de pessoas que migraram e não deram certo. Queriam ver se eu não era mais uma brasileira querendo ganhar algo em cima, que chegou aqui para tirar o lugar de algum português ou para ter dinheiro fácil”.
A atleta quase desistiu, nos seus primeiros tempos em Portugal, porque duas semanas depois de ter assinado pelo Benfica, mais de uma dezena de judocas abandonaram o clube da Luz: “Achei que o problema era eu. Era como se eu estivesse a ser humilhada para ir atrás de um sonho. Depois percebi que não tinha nada a ver comigo. Era uma questão interna do clube”.
Rochele Nunes já passou por outro momento “realmente difícil”, nos últimos tempos: a possibilidade de não haver Jogos Olímpicos em Tóquio, devido à pandemia. “Mudei toda a minha vida, mudei de país pelo sonho de conquistar uma medalha e não sabia o que ia acontecer”, confessou.
Inserida na categoria +78kg, Rochele já subiu ao pódio em Europeus, por Portugal, e vai estar nos Mundiais de judo, que arrancam neste domingo em Budapeste. Será precisamente a última judoca a entrar em ação, no dia 12, sábado.
[sc name=”assina” by=”Nuno Teixeira, ZAP” ]
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