Pode um selecionador — e o sonho de um título europeu — ajudar a curar as feridas de um país dividido?

Gareth Southgate, ao centro, com o braço no ar durante uma sessão de treino da seleção inglesa durante o Mundial de 2018

No dia em que a Inglaterra terá o seu futuro no Euro 2020 decidido, a reflexão sobre o papel que um selecionador nacional com discurso conciliador sobre questões fraturantes da sociedade inglesa impõe-se. Poderão os valores prevalecer sobre o desejo de celebrar o sucesso de uma equipa que se posiciona tão abertamente contra a injustiça racial?

Quando foi anunciado como selecionador da equipa dos três leões, Gareth Southgate era já um nome conhecido pelos adeptos ingleses. Enquanto jogador, passou por clubes como o Crystal Palace, o Aston Villa ou o Middlesbrough — equipa do segundo escalão inglês onde se estreou como técnico de equipa principal, em 2006 — numa carreira modesta, longe dos principais palcos do futebol europeu. Como treinador da equipa nacional, começou por orientar os sub-21, a partir de 2013, até ser designado selecionador da equipa sénior em 2016.

Agora, Southgate vê-se numa posição nova dentro do futebol: a de reconciliador de um país profundamente dividido por questões sociais, políticas, culturais e, acima de tudo, na sua identidade.

O primeiro problema que teve de resolver, ainda antes do início do Euro 2020, foi posicionar-se publicamente sobre a questão que pairava no ar: devem os jogadores ajoelhar-se (taking the kneee) antes do apito inicial de cada partida, numa mostra de solidariedade com o movimento Black Lives Mater e à semelhança do que tem acontecido nos jogos da Premier League desde maio de 2020?

A resposta foi dada de forma contundente, num artigo de opinião publicado no site The Players Tribune, a 8 de junho, onde Southgate deu a conhecer a sua definição de valores ingleses. Fazendo-se valer das memórias com o seu avô, veterano da II Guerra Mundial, do jubileu de prata da Rainha e, naturalmente, de jogos de futebol, o selecionador tentou mostrar aos seus compatriotas a sua visão do que é, do alto dos seus 50 anos, ser inglês.

“O primeiro jogo da Inglaterra que eu me lembro de ter visto foi no Mundial de 1982, quando tinha 11 anos. Foi o primeiro Mundial para o qual a Inglaterra se qualificou durante a minha vida e eu estava obcecado. Tinha um quadro na parede, pronto a preencher com cada resultado, com o marcador de cada golo, todos os detalhes.”

A visão que Southgate defende não é incompatível com os chamados valores progressistas, os mesmos que permitiram à Inglaterra contribuir para áreas como a arte, a ciência e o desporto, por esta ordem, e que deve motivar os adeptos ingleses a pautar-se pelo respeito e pela empatia e a insurgirem-se contra a injustiça racial. Algo que nem sempre tem sido possível, dada a diferença de valores entre jogadores e adeptos — muitos dos quais preferem mesmo desvincular-se de qualquer apoio à equipa por não se sentirem representados.

“A ideia de que alguns jogadores não sabem o que significa jogar por Inglaterra — ou não querem saber — tornou-se uma falsa narrativa. Não é preciso cavar fundo para perceber isso”, aprofundou Southgate.

Ao contrário do que acontece em outras modalidades, onde existe uma clara sub-representação de atletas negros, a descriminação racial é visível nos insultos racistas que são dirigidos aos jogadores e que se estendem às redes sociais dos próprios jogadores.

Gareth Southgate reconhece o impacto desta problemática, apontando as vantagens de um contacto tão direto entre jogadores e adeptos, apesar de temer pelo impacto psicológico de certos comentários.

“As redes sociais têm sido um recurso fundamental para dar aos nossos leitores uma plataforma e uma ferramenta positiva de várias maneiras. De facto, sinto que esta geração de jogadores ingleses está mais próxima dos adeptos do que tem estado durante décadas. Apesar da polarização que vemos na sociedade, estes rapazes estão no mesmo comprimento de onda que vocês em muitas questões”, revelou.

“Eu vejo os jogadores a fazer scroll nos telemóveis logo a seguir ao apito final e penso… Será uma boa ideia fazer isso?

De facto, uma análise feita pelo jornal The Guardian (juntamente com a organização Hope Not Hate) a mais de 585 mil publicações, durante e após os três jogos da seleção inglesa na fase de grupos, encontrou mais de dois mil tweets com mensagens abusivas, algumas delas claramente racistas. Na comparação direta das mensagens insultuosas que visavam Harry Kane e Raheem Sterling, a abordagem racista nos discursos foi evidenciada.

Um número considerável de tweets também abordava a decisão dos jogadores de se ajoelhar antes do início dos jogos, atitude que valeu um coro de assobios dos próprios adeptos nos jogos amigáveis contra a Roménia e a Áustria — e que se viria a repetir nos três jogos oficiais da fase de grupos do Euro 2020, todos jogados em território inglês.

A questão tornou-se de tal forma controversa em território inglês que Boris Johnson foi chamado a pronunciar-se. Segundo o diário britânico, apesar de se mostrar solidário com jogadores e todos aqueles que “escolham manifestar-se pacificamente e fazer-se ouvir”, o primeiro-ministro inglês escusou-se a condenar o comportamento dos adeptos.

Gareth Southgate, por sua vez, não teve problemas em posicionar-se novamente ao lado dos seus jogadores, dando aos adeptos um acesso exclusivo ao ambiente que se vive dentro do balneário.

“Eu ouvi os assobios. Em nome dos nossos jogadores negros, não é algo que eu quisesse ouvir porque parece uma crítica dirigida a eles.” Em declarações aos jornalistas, o selecionador optou ainda por retirar qualquer carga política ao gesto, informando-os de que não iria pronunciar-se novamente sobre o assunto.

“Eu acho que nós temos uma situação em que as pessoas pensam que se trata de uma posição política com a qual não concordam. Mas não é essa a razão pela qual estamos a fazê-lo. Estamos a fazê-lo porque nos apoiamos uns aos outros. Eu acho que o mais importante para os nossos jogadores é saberem que todos os seus colegas de equipa e staff os apoiam. Eu acho que a maioria das pessoas entende isso.”

Tom conciliador elogiado por analista político

Em declarações ao The Guardian, Frank Luntz, analista político inglês, elogiou o discurso conciliador de Gareth Southgate e revelou já o ter recomendado aos políticos britânicos, por entender que o clima que se vive em Inglaterra pode levar o país a atingir um estado de polarização política semelhante à que se vive nos Estados Unidos da América caso os seus líderes não mudem a abordagem.

“Ele é a definição de liderança. Se um político vem ter comigo e pergunta ‘o que devo fazer?’, eu digo: ‘sê mais como o Gareth Southgate’. Ele adotou uma abordagem comum que as pessoas apreciam. Isso é a definição de união.”

O próprio The Guardian já se manifestou acerca da polémica em torno do gesto praticado pelos futebolistas ingleses, num editorial em que a problemática é resumida num único parágrafo de frases curtas.

“Os jogadores não são obrigados a manter a sua indignação em relação ao racismo para eles próprios. O ódio racial não vai desaparecer por ser ignorado. O futebol inglês tem trabalhado arduamente para acabar com o racismo. Os adeptos ingleses não podem desiludir”, pode ler-se.

“Este mês, num grande torneio europeu, os futebolistas vão transferir a dissidência da periferia da vida britânica para a televisão em horário nobre com um único gesto. Um ato que não pode ser retirado e que expressa bem, em termos de raça, até onde o futebol tem chegado e ainda pode ir.”

No dia em que a Inglaterra terá o seu futuro no Euro 2020 decidido (joga contra a Dinamarca, às 20h, em Wembley), a reflexão impõe-se. Gareth Southgate, ao expressar tão veemente a sua posição sobre um assunto fraturante na sociedade inglesa, arriscou a um divórcio feio entre adeptos e uma equipa que deveria representar uma nação, ainda que profundamente dividida.

Poderá a benesse dos bons resultados conseguidos pela equipa dos três leões ajudar a sarar as feridas de um país que, tal como se provou no Brexit, se encontra a meio de uma discussão sobre a sua identidade?

Será a vontade de celebrar o regresso do futebol à sua casa mãe maior do que os valores conservadores que ainda vigoram junto dos adeptos ingleses mais velhos? Poderá o futebol dar respostas a um problema muito maior? Não seria a primeira vez que o desporto conseguiria tal feito.

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