Simone Biles. O ouro olímpico não é sinónimo de paz, muito menos interior

Simone Biles, Jogos Olímpicos de Tóquio 2020
Simone Biles, Tóquio 2020

Na sequência do escândalo Nassar, a opinião pública dos EUA concordou que não valia tudo no caminho até ao ouro olímpico — principalmente quando está em causa a dignidade humana. Com a sua principal estrela a desistir de duas finais em Tóquio, serão os americanos, habituados a um medalheiro recheado, complacentes com a saúde mental e o bem-estar dos seus atletas?

Em 2017, o mundo assistiu em choque às revelações que em torno de Larry Nassar. O que começou por ser uma investigação jornalística do Indianapolis Star, a partir de uma denúncia anónima, acabaria por se tornar a página mais negra da tão bem sucedida ginástica norte-americana e até mesmo do desporto mundial.

Primeiro, uma. Na semana seguinte, meia dúzia. Na seguinte, dezenas. Até se chegar à chocante marca das 156 atletas abusadas sexualmente pelo médico que durante anos esteve ao serviço do Comité Olímpico norte-americano, da USA Gymnastics — órgão que tutela a modalidade no país —, da Universidade do Michigan e de outros tantos ginásios de menor dimensão naquele estado.

Todos pareciam perplexos e as respostas escasseavam. Como poderia um escândalo destas dimensões acontecer no desporto de alto nível? Como poderiam atletas altamente consagradas, como Gabrielle Douglas ou Alexandra Raisman relataram nos seus testemunhos, sofrerem abusos sexuais nas noites que antecediam a sua entrada em competição nos Jogos Olímpicos? Como é que estes atos aconteciam nas próprias residências da aldeia olímpica? Quem se responsabilizava por aquelas jovens, menores de idade, quando viajavam pelo mundo para representar o seu país?

As notícias dos abusos a que as ginastas norte-americanas estiveram sujeitas durante décadas foram a primeira pedra que se levantou, o que permitiu ao grande público um acesso privilegiado — e indesejado — aos meandros da modalidade.

Infâncias e adolescências sacrificadas, formação escolar em casa e nos bancos dos ginásios, dias de treino com duração de 12 horas, repetições até à exaustão — e perfeição, obviamente —, um dia de descanso semanal, ofensas psicológicas, dietas restritas, e muitas lesões oprimidas.

Foi esta realidade que várias gerações de atletas experienciaram, afinal de contas, com este método Béla e Martha Karolyi, o famoso casal de treinadores romeno, construíram algumas das maiores lendas da ginástica — com Nadia Comăneci à cabeça — e deram aos EUA a primeira medalha de ouro olímpica na final feminina por equipas. Depois de se tornarem donos e senhores da modalidade no país que escolheram para se fixar, a ordem era para replicar o modelo em todos os ginásios.

Larry Nassar terá conseguido ganhar a confiança das ginastas ao contornar muitas das regras impostas pelos Karolyi nos campos de treino, ocasião em que entrava nos quartos das atletas — famintas após horas de treinos — para, por exemplo, lhes entregar comida sem que os treinadores soubessem.

Uma cultura de medo e coerção que o mundo passou a conhecer quando centenas de atletas contaram as histórias do seu abuso no Tribunal de Ingham County, no Mighigan, a propósito do julgamento de Nassar.

Simon Biles não foi uma delas. Acabada de sair dos seus primeiros Jogos Olímpicos, no Rio de Janeiro, Biles vivia o primeiro período longo de férias em anos. No entanto, através de um post nas redes sociais, revelou que também ela fora abusada por Nassar, o que a tornaria, caso avançasse (como fez) para um novo ciclo olímpico, a única surviver no ativo.

O regresso à competição foi difícil, não por questões relativas à sua forma física — Biles revelou estar surpreendida com a rapidez com que voltou a fazer alguns dos seus saltos característicos e fora do alcance das restantes ginastas — mas por ter de competir sobre a alçada de um organismo, a USA Gymnastic, que durante anos foi conhecedora das situações de abuso, que as abafou sistematicamente para garantir que o seu bom nome permanecia intacto e nada fez para lhes por termo, permitindo que mais jovens tivessem a sua dignidade violada por Nassar.

Simone foi vocal. Nunca deixou de exprimir a sua necessidade por respostas, mesmo quando a USA Gymnastics tentava varrer o assunto para debaixo do tapete ou reformular a sua imagem — o organismo foi à falência e toda a direção apresentou a demissão — através de um novo branding.

Em entrevistas recentes, Biles afirmou mesmo que os quatro anos de preparação para Tóquio tinham mais que ver com usar o seu estatuto na modalidade e influência na sociedade norte-americana, para não fazer esquecer o caso e responsabilizar todos os envolvidos, do que qualquer motivação desportiva.

Depois chegou a pandemia. Simone deveria ter chegado a Tóquio com 23 anos, mas o adiamento da competição ditou que 12 meses fossem adicionados ao seu calendário de treino — e até à sua reforma na modalidade.

Continuar, para surpresa de muitos, não foi uma escolha óbvia para a quatro vezes campeã olímpica. O corpo começava a ceder e as lesões, crónicas, a acumularem-se. Biles chegou mesmo a afirmar que temia chegar aos 30 anos numa cadeira de rodas.

Mas as expectativas eram muitas, os patrocínios e o dinheiro envolvido também. Sem Phelps ou Bolt, Simone Biles chegaria ao Japão como a atleta mais medalhada em competição e como a estrela da competição. Mas o estatuto e a fama não compram paz, muito menos de espírito. Os primeiros sinais de que algo poderia não estar bem com a ginasta podiam ser observados numa entrevista que deu ao The New York Times.

Nela, Biles revelou estar ansiosa pelos Jogos Olímpicos de Tóquio. Não para que começassem, mas para que acabassem. Aos jornalistas que acompanharam a sua saída de casa, antes de rumar a Tóquio, revelou que o momento mais feliz da sua carreira como atleta de alta competição tinha sido a pausa que fez após os Jogos do Rio, em 2016.

A estreia no Ariake Gymnastic Centre, no último domingo, não correu como ela, os norte-americanos e todos os fãs da modalidade previam.

Após um salto mal conseguido no cavalo e uma saída no solo, Biles conseguiu ainda assim qualificar-se para todas as finais individuais — no caso das barras paralelas, mesmo à tangente — e ajudou os Estados Unidos a marcarem presença na final de equipas, com o Comité Olímpico Russo a ver assegurado o primeiro lugar da qualificação.

Mesmo com um visto à frente de todos os objetivos, Simone Biles não estava satisfeita — as expressões faciais, que Martha Karolyi tanto tentou influenciar nas ginastas que treinou, revelavam-no.

A imprensa norte-americana também não. Nas horas que se seguiram, múltiplos artigos de órgãos de comunicação de renome (norte-americanos e não só) destacavam o “off day” da equipa norte-americana e tentavam antever o que poderia acontecer na final desta terça-feira face às boas sensações deixadas pelas atletas russas.

Consciente do tumulto que se estava a gerar, Biles usou a sua página de Instagram para se expressar, de forma contundente mais uma vez. “Não foi um dia fácil para mim, mas consegui superá-lo”, admitiu, prosseguindo com uma admissão pouco comum no mundo do desporto: “Sinto verdadeiramente que tenho o peso do mundo nos meus ombros às vezes. Eu sei que o sacudo e faço com que pareça que a pressão não me afeta, mas às vezes é muito difícil. Os Jogos Olímpicos não são uma brincadeira!”, acrescentou a campeã.

 

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A final por equipas estava a algumas horas de distância quando Simone escreveu a legenda que acompanha a publicação.

Chamada a marcar presença, Biles perdeu-se, literalmente. Durante a parte final do seu salto, depois de ganhar impulsão no contacto com o cavalo, e enquanto deveria fazer múltiplas piruetas, a atleta perdeu a noção do seu posicionamento no ar, o que poderia ter resultado numa lesão de extrema gravidade. Felizmente, a norte-americana conseguiu aterrar nos próprios pés, ainda que de forma acidentada. Após este momento, tudo o que aconteceu no Ariake Gymnastic Centre estava para além do imaginário de qualquer fã de ginástica.

Simone Biles saiu da área de competição acompanhada pelo seu treinador para regressar minutos depois com ligaduras no pé — o que muitos entenderam como uma consequência do salto anterior.

Durante este interregno, Biles terá dito “não quero fazê-lo novamente, acabou“. A ginasta ainda chegou a preparar-se para competir nas paralelas, mas Jordan Chiles acabaria por tomar o seu lugar num evento em que nem era suposto participar.

Ainda no domínio da incerteza, a comunicação social presente tentava perceber se esta seria uma decisão de cariz único, com Biles a competir novamente na trave e no solo, e o que a justificava.

A versão inicial da USA Gymnastics era que uma lesão no pé tinha retirado Biles da competição. No entanto, esta seria negada pela própria depois da competição ser concluída e de o conjunto norte-americano ter assegurado a medalha de prata. Aos jornalistas, Biles “abriu o livro”, o verdadeiro, não o oficial.

“Eu não confio em mim como confiava. Não sei se é a idade e se estou mais nervosa quando faço ginástica. Também sinto que não me divirto tanto. Nestes jogos, eu queria fazê-lo por mim mas cheguei aqui e sinto que continuo a fazê-lo pelos outros. Magoa-me que fazer o que eu adoro tenha sido tirado de mim só para que eu possa agradar outras pessoas”, disse na conferência de imprensa.

Na altura, a decisão de competir ou não na final individual ainda estava em cima da mesa — foi confirmado esta manhã que Biles também optou por não marcar presença na que seria a sua segunda final e uma oportunidade de revalidar o ouro conquistado no Rio. O foco seria o seu “bem-estar“. “Há vida para além da ginástica”, resumiu.

A decisão de abandonar a final de equipas foi, segundo a própria, uma forma de proteger as companheiras e de assegurar que estas conquistariam uma medalha.

Jordan Chiles, que treina diariamente com Biles no ginásio que esta possui no Texas, revelou que nos exercícios de aquecimento Biles já tinha tido episódios de twisties, um termo muito usado na ginástica e que remete para um bloqueio mental que acaba por se refletir nas indicações transmitidas ao corpo.

Mais tarde, Simone recorreu novamente às redes sociais para exaltar o mérito das “corajosas e talentosas” colegas de equipa.

“Eu estarei para sempre inspirada pela vossa determinação em não desistir e em lutar contra a adversidade. Elas avançaram quando eu não consegui. Obrigada por estarem lá para mim e me apoiarem.”

As reações da imprensa mundial a estes acontecimentos foram imediatas, com alguns títulos a destacarem a coragem de Biles em admitir o verdadeiro motivo do abandono e outros a sublinharem a “perda” do ouro olímpico pela equipa norte-americana.

A expectativa está agora em saber como irá a opinião pública norte-americana reagir, quão complacente com a saúde mental e o bem-estar dos seus atletas será — principalmente quando a figura em causa é uma jovem que teve de suportar um preço inestimavelmente alto para cumprir o seu sonho de trazer o ouro para casa, com as cicatrizes mentais a relembrarem-na disso até ao fim dos seus dias.

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Comentários

5 comentários a “Simone Biles. O ouro olímpico não é sinónimo de paz, muito menos interior”

  1. Novas profissões extremamente lucrativas.

    Vitimas profissionais.

  2. Avatar de Miguel Ferreira
    Miguel Ferreira

    “num evento que não era suposto participar.” mas são os eventos que participam ou são as pessoas que participam EM eventos?

    1. Caro leitor,
      Obrigado pelo reparo, está corrigido.

    2. O tema é interessante. Gosto da forma como esta (nova/velha) história está escrita, sem ser demasiado longa nem demasiado piegas. De bom grado esqueço esta pequena falha.

  3. Avatar de João Carlos Lopes
    João Carlos Lopes

    A febre do ouro tende a tornar-se uma adição, uma dependência feroz que aniquila todas as outras dimensões da vida, uma procura de perfecionismo que aproxima ou transforma mesmo o nosso comportamento numa perturbação obsessiva-compulsiva (POC).

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